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Livro
Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos
Raúl Antelo

republix de http://www.aestufa.com.br/canibalia/

ANA CECÍLIA SOARES
REPÓRTER
ENTREVISTA

Amor e arte nos trópicos


Raúl Antelo defende que a escultora brasileira Maria Martins exerceu forte influência na obra de Duchamp


12/10/2010


Raúl Antelo
Professor de Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina

Com uma pesquisa inédita e ousada, o professor Raúl Antelo desenvolve a narrativa de "Maria com Marcel: Duchamp nos Trópicos". O livro parte da permanência de Duchamp em Buenos Aires (vinculada com a Semana Trágica e a Rebelião Anarquista). Com destaque para a relação amorosa do artista com a escultora brasileira Maria Martins e os reflexos desse romance nas obras do francês. O autor falou ao Caderno 3 sobre a pesquisa

Como foi que começou o interesse em estudar a figura de Maria Martins?

Há muitos anos já havia pesquisado algumas figuras meio esquecidas do surrealismo brasileiro, em especial Aníbal Machado, cujos esparsos publiquei em "Parque de Diversões Aníbal Machado". Mais tarde, comecei a me interessar pela obra de Maria Martins e por sua vida incrível, cercada do mais conspícuo da vanguarda internacional: Lipchitz, Léger, Mondrian, Max Ernst, Brancusi, tantos mais...

Por que a obra de Maria Martins foi tão rechaçada pela crítica brasileira, a começar por um de seus principais críticos, Mário Pedrosa?

Creio que o papel de mera co-adjuvante que lhe coube foi provocado, basicamente, pela hegemonia concreto-abstracionista que, um pouco na linha do que acontecera nos Estados Unidos com Clement Greenberg, alijou a estética surrealista, mesmo a dissidente, em nome do moderno como construção e, mais ainda, do moderno como ideal. E Pedrosa, conquanto tivesse introduzido o surrealismo no final dos anos 20, estava, nos anos 50, claramente alinhado com a posição dicotômica de Greenberg: vanguarda ou kitsch. E Maria era kitsch.

Quais foram as principais influências de Duchamp na produção de Maria? A artista também exerceu alguma influência na obra do francês?

Não me interessei tanto pela marca dele nela, que faz parte do previsível. Um artista internacional marcando, com suas leituras e comentários. As opções de uma artista em vias de consolidação. Mesmo quando alguns títulos das esculturas de Maria, como "Hasard", "Hagard" ou "Très Avide", sejam jogos onomásticos inocultavelmente "duchampianos". Mas atraia-me, entretanto, até como problema teórico, o contrário: a marca dela nas derivas derradeiras dele. A temática da instalação, por exemplo, é inseparável das experiências táteis que Duchamp realiza sobre o corpo de Maria Martins, primeiro para a capa do catálogo da exposição surrealista, depois nas modelagens e, por último, em "Dados" ("Etant donnés"). Nasce, justamente, aí uma forma de recusa do dado, uma compreensão da arte como o in-existente, como essa negatividade que esvazia a completude meramente ideal da obra de arte.

Que principais aspectos foram abordados no livro?

Creio que a ênfase está posta em abandonar o valor estrutural-construtivo, descobrindo, porém, a origem de um paradigma analógico bipolar, não necessariamente dialético, em que o relevante já não é a tensão entre o ativo e o passivo, o interno e o externo, ou, como se pensava até os anos 60 (como Octavio Paz pensa Duchamp), o movimento pendular entre tradição e ruptura. O desafio consiste, me parece, em ver, na obra, uma dobra interna, discursiva, provocada pela contrariedade do próprio artista com uma condição que não se reconhece como tal; pela identidade funcional da arte, mas não por algo dado ou natural, a ela inerente, porque são os observadores os que fazem a obra. E ainda pela contiguidade ambivalente, mesmo que não pela separação ou discriminação entre valores isolados, em outras palavras, pelas noções de dobra, vestígio ou fantasma, mas nunca de substância ou conteúdo intrínsecos. Esse paradigma, que Duchamp inaugura e que está na reflexão de Badiou ou Derrida, de Jean-Luc Nancy ou de Godard, já não descreve nem uma arte específica, nem uma instância autônoma de avaliação. Não aponta a absolutos fundacionais, porém, arma, com relação a qualquer ideia de ruptura, uma arqueologia que não desdenha a mobilidade intrínseca do estético, isto é, o movimento da imagem e da própria história, mobilidade que nasce do fundo mesmo do abismo do sentido.

Há muita carência de material sobre a produção artística de Maria Martins?

Mais do que ausência de textos sobre a obra de Maria Martins, eu falaria de ausência de ferramentas para fazer os textos falarem. Essa é, portanto, uma lacuna facilmente comprovável em boa parte da crítica nacional. Uma vez que, quando há um interesse pela teoria, falha no conhecimento da obra, mas a recíproca é verdadeira. Quando se põe a descrever a produção, é por ela engolida sem perceber a densidade dos problemas teóricos que esses enunciados postulam. É preciso ser arquivista à maneira de Warburg ou Foucault, o que implica percorrer o arquivo com grande imaginação.

Por que Marcel Duchamp foi para Buenos Aires? Como foi a passagem dele pela cidade?

Duchamp chega em Buenos Aires com pouco ou nenhum conhecimento sobre a cidade, e a Argentina como um todo, quase no fim da I Grande Guerra, fugindo de um hipotético recrutamento e se depara, para seu espanto, com um exército fardado à moda alemã, o que lhe faz pensar ter sido capturado pelo inimigo. Se essa viagem maiúscula parecia não tê-lo tirado do mesmo lugar, a ideia desdobra-se temporalmente. O tempo não existe. Existem diversos regimes temporais que se conjugam constantemente. Reconstruo, então, com paciência beneditina, alguns vestígios da história cultural do Prata, que boa parte da crítica internacional, ora por desconhecimento das línguas da região, ora por falta de treinamento na história cultural, sempre desprezou, fixando um lugar comum da crítica: Duchamp nada fez e, em Buenos Aires, só jogou xadrez. Mesmo aceitando a ideia do jogo, não há como separar o xadrez de certas ideias a respeito de jogos e instituições que, por então, começavam a circular numa cidade modernizada com não poucos sobressaltos.

Que ideias o tomavam naquele momento?

Basicamente a de não compor um painel documental, que visa sempre a uma história monumental, mas "desobrar", in-operar ou desativar um modelo de leitura estabelecido: autônomo, funcional, estrutural, dialético.

Como aconteceu o encontro de Duchamp com Maria Martins? O livro também se detém ao romance entre os dois artistas?

Eles se conheceram em Nova York, no início dos anos 40, e não há como separar certas bus´as, como a daquela escultura morta que Marcel nos propõe com uma bandeira americana ensanguentada, em plena guerra, eco perfeito do empenho contemporâneo de Maria: uma ópera sobre Bolívar, que seria sua contribuição à política de boa vizinhança em chave erudita (em chave de massas já estava Carmem Miranda, esculpida, aliás, por Maria Martins). Como se observa, nada muito diferente da situação atual, que continua avaliando a arte brasileira a partir de um desejo de reconhecimento... A parte pessoal não estava na mira. E é mesmo difícil de reconstruir, dado que as cartas de Marcel a Maria estão hoje no Museu da Filadélfia, ao passo que as dela a Marcel foram, provavelmente, destruídas. A "petite histoire" está anagramaticamente filigranada nas experiências de ambos. E o livro solicita, então, um leitor cúmplice, não só que se entregue ao devaneio do crítico, mas que use "Maria com Marcel" para renovar a prática artística, o que boa parte da crítica, aliás, como Burucua, Laddaga, Aguilar, Link, destacou em sua primeira edição.

Fique por dentro
Maria Martins

Nasceu em 1900, na pequena cidade mineira de Campanha, e morreu no Rio de Janeiro em 1973. A artista estudou pintura em Paris, mas encontrou sua verdadeira vocação na escultura. Ainda na França começou a trabalhar com a madeira e, no Japão, aprendeu a modelar "terracota". Somente a partir de 1939 passou a utilizar o bronze, material que, daí em diante, se tornou o principal suporte de sua obra. No Brasil, sua participação maior ocorreu na Bienal de São Paulo, de qual participou desde o primeiro evento, em 1951. Com a Bienal de 1955 ganhou reconhecimento, ao ser premiada com o título de melhor escultora nacional. Mas sua carreira teve maior dinamismo no exterior. Em território nacional, a obra de Maria é pouco lembrada. A artista ficou estigmatizada pelo relacionamento amoroso que teve com Marcel Duchamp. Nos últimos anos, devido aos esforços de pesquisadores como Antelo, sua obra vem ganhando outra dimensão.

Editora UFMG
2010
385 páginas
R$ 45,00

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