E a gente achava que já tinha visto tudo!...

Na Ocupação Eliana Silva: proibir cadeirinhas para crianças na creche?
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente ... com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, alimentação...”(Art. 227 Constituição/1988) Dia 27 de abril de 2012. Em Belo Horizonte, em uma sala da CIMOS[2], do Ministério Público de Minas Gerais, acompanhei uma Comissão de moradores da Ocupação Eliana Silva[3], que buscava justiça. A vovó dona Madalena, 61 anos, em lágrimas, disse: “Até hoje, nunca tive casa própria. Sempre trabalhei como doméstica em casas dos outros. Nos últimos anos, eu vivia de favor na casa de uma cunhada, mas fui despejada por ela. Minha filha, Ana Carla, é copeira na UFMG. Trabalha servindo lanche para os estudantes. Ganha só um salário mínimo e paga R$250,00 de aluguel. Ela não tem condições de me ajudar. Eu sobrevivo com um salário mínimo de pensão do meu primeiro marido falecido.” Elisângela, 28 anos, ao pedir apoio ao promotor, disse: “Sou índia do povo Pataxó. Nasci no Sul da Bahia. Minha irmã e meus parentes estão lutando pelo resgate das nossas terras que foram invadidas pelos brancos. Estou em Belo Horizonte há 13 anos. Eu vivia com minha sogra, mas o barraco dela é muito pequeno. Não podemos ficar pesando sobre ela. Tenho uma filha com anemia falsiforme. Não posso trabalhar fora, pois tenho que cuidar da minha filha que exige muitos cuidados médicos. Meu marido trabalha, mas só ganha um salário mínimo. Na ocupação Eliana Silva somos seis pessoas indígenas.” Diocélia, 24 anos, com Gabriele, de 4 meses no colo, também contou ao promotor um pouco do sufoco que vem passando: “Meu marido vende balas de doce dentro dos ônibus. Não ganha mais do que R$500,00 por mês. A gente estava sobrevivendo em um barraco de dois cômodos, alugado por R$400,00. Não conseguimos pagar o último mês. Na ocupação estão minha família e as famílias de quatro irmãs minhas, além da minha mãe e meus irmãos. Não temos outra alternativa. Restou-nos lutar por um pedacinho de terra para construir nossa casinha. Vamos morar no ar?” Com esses depoimentos e alertando que o terreno ocupado estava abandonado há muitas décadas, que não cumpria sua função social e que o déficit habitacional em Belo Horizonte está acima de 174 mil moradias, que na capital mineira não foi construída nenhuma casa pelo Programa Minha Casa Minha Vida para famílias de zero a três salários mínimos, solicitamos apoio ao Ministério Público que tem a missão de defender o público, nesse caso, 350 famílias sem-terra e sem-casa, com centenas de crianças e idosos, e vários indígenas. A caminho da Ocupação Eliana Silva, no meio da automovelatria – um enorme engarrafamento na Av. Amazonas, às 16:10h – Diocélia continuou narrando as imensas dificuldades que enfrenta. Acrescentou: “O dono do barraco que a gente alugou cortou a água, a energia e colocou um cadeado na porta do barraco. Todas nossas coisas ficaram trancadas lá, inclusive fraudas e mamadeira da Gabriele. Temos contrato de aluguel até junho, mas o dono não respeitou o contrato.” Notícias sobre despejos por donos de barracos alugados, mesmo com contrato assinado, sem autorização judicial, se ouve aos montes na Ocupação. Na Ocupação, encontramos o povo reconstruindo dezenas de barracas de lona preta que tinham sido destruídas pela chuva forte da noite anterior. Muita lama e terra escorregadia. Diocélia nos contou que a chuva invadiu a barraca dela. Molhou os cobertores. A chuva, que iniciou por volta das duas horas da madrugada, não deixou quase ninguém dormir o resto da noite. Após a chuva, Diocélia e Cleideone, carregando as duas filhas andaram a pé por 40 minutos até chegar ao barraco alugado pela mãe dela. Puderam tomar um banho somente às 05:30h da madrugada. Dormiram 1,5 hora. Levantaram. Pegaram uns pedaços de pau e voltaram para a Ocupação. “Agora é que não vamos desistir. Lutaremos até conquistar nossa casinha própria”, arrematou Cleideone, enquanto reforçava a barraca que tinha caído. Mas eis um fato inusitado: “A polícia está proibindo a entrada das cadeirinhas que ganhamos para a creche das crianças!”, gritou um senhor que chegava ofegante. Dirigimo-nos à entrada da Ocupação, onde, de fato, constamos o absurdo. Apresentei-me e interroguei o tenente Damásio: “Por que as cadeirinhas da creche das crianças não podem entrar?” “Recebemos ordem para não deixar entrar nenhum material de construção”, alegou o tenente. “Tenente, cadeirinha para crianças da creche não é material de construção”, alertamos. “Não pode entrar madeira. Nas cadeirinhas há madeira”, tentou o tenente justificar o injustificável. Insistimos: “Tenente, não há nenhuma lei ou ordem judicial proibindo a entrada de materiais de construção na Ocupação e muito menos a entrada de cadeirinha de criança. Choveu muito na noite anterior. O chão está todo úmido. Como pode as crianças sentar no chão úmido? E o Estatuto da Criança e do Adolescente? Não assegura respeito à dignidade das crianças?” Telefonamos para comandantes superiores, mas após uns quarenta minutos o tenente nos disse que não tinha sido autorizada a entrada das cadeirinhas doadas por pessoas de boa vontade que se comoveram ao ver a bonita barraca de lona preta que fizeram para ser a Creche das Crianças. Buscando ser simples como as pombas, mas espertos como as serpentes, após vários policiais ouvirem muitas mães clamarem pelos direitos humanos de suas crianças, voltamos para dentro da Ocupação para reunião da Coordenação e, após, Assembléia Geral. De repente, o sr. Sebastião, 81 anos, sanfoneiro da comunidade, chega gritando: “A Polícia não quer deixar trazer aqui pra dentro o meu tamborete – um pequeno banquinho. Preciso dele para sentar para poder tocar a sanfona que é muita pesada. Eu já fiz ponte de safena, tenho problemas de coração e não agüento tocar a sanfona em pé.” Enfim, antes, pedimos ao Ministério Público que cumpra sua missão de defender os direitos fundamentais das crianças e idosos. Depois, vimos com nossos próprios olhos Polícia militar de Minas, cumprindo ordens injustas, agredir a dignidade de centenas de crianças e idosos. Assim, a polícia está desviada da sua função. Está protegendo uma propriedade que não cumpria função social. Por que a polícia não protegia o terreno antes, quando estava abandonado e era bota-fora, lugar de desova de cadáveres? A polícia não deve respeitar a dignidade das crianças e dos idosos? Aos policiais alertamos o brado de dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, martirizado em 24 de março de 1980: “Militares, vocês não estão obrigados a cumprir ordens que são contrárias à ordem maior de Deus, que diz: Não matarás. Obedeçam suas consciências.” Acrescento, nos evangelhos Jesus ensina que leis e regras devem ser respeitadas, se forem justas. Jesus desrespeitou várias leis e regras que agrediam a dignidade humana. Aos que reprimiam as crianças, Jesus bradou: “Deixai as crianças e não as impeçais de vir a mim, pois delas é o Reino dos Céus.” (Mt 19,14; Mc 10,14; Lc 18,16). Mexeu com as crianças, mexeu com Jesus de Nazaré e conosco. Aos que se sentiam justos e donos da verdade, Jesus mostrou que a oferta da viúva, apenas uma moedinha, valia mais, pois ela se doava e não apenas dava sobras. (Cf. Mc 12,42-44).
Na Ocupação Eliana Silva, as famílias e a comunidade (sociedade) lutam para garantir dignidade a suas crianças e idosos, mas o Estado tem sido omisso, melhor dizendo, cúmplice e, muitas vezes, promotor de opressão. O povo clama por moradia, creche (educação) e dignidade e o Estado manda a polícia, o trato desumano legalista e arbitrário de uma polícia que defende primordialmente a propriedade privada – inclusive a que não cumpre função social - para além de qualquer manifestação de humanidade. Desde quando a polícia tem que impedir a entrada de cadeirinhas para crianças em algum lugar, a entrada de um banquinho para um idoso descansar e tocar sua sanfona? Isto é negação do Estado Democrático de Direito. É o cúmulo da violação da dignidade humana. Impossível calar. Gilvander Moreira Belo Horizonte, MG, Brasil, 29 de abril de 2012.

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